A trama de desvios da Pró-Saúde, liderada por influente quadro da Igreja
Como padre, Wagner Portugal, 49 anos, escalou a hierarquia da Igreja Católica ao demonstrar rara capacidade para administrar as verbas das paróquias por onde passou em sua trajetória de mais de uma década ao púlpito. Assim, lançando mão da notória simpatia, foi se aproximando da alta cúpula do clero brasileiro. Mas logo tomou um tombo,
tamanho era seu apetite no campo dos negócios. Isso acabou irritando seus superiores, e o caso foi parar à mesa do Vaticano, que o expulsou do sacerdócio em 2017. Os laços com a cúria, porém, nunca cessaram — a ponto de o ex-pároco assumir o comando da Pró-Saúde, uma das grandes organizações sociais (OS) dedicadas à administração de hospitais públicos, que conta com padres e bispos eméritos em sua diretoria estatutária.
No posto, Portugal costuma alardear que aquela é sua “catedral”. Os primeiros problemas em sua gestão vieram à tona em 2019, quando o então CEO assinou um acordo de delação premiada no âmbito da Operação Lava-Jato, admitindo participação em um esquema de pagamento de propina no valor de 52 milhões de reais para obter contratos no Rio de Janeiro. Pois aquilo era só a ponta de um dreno de dinheiro do Estado brasileiro bem mais abrangente, um enredo agora trazido à luz depois de vasta investigação.
A artilharia contra Portugal começou com denúncias de ex-funcionários que o acusam de se apossar de recursos da OS para sustentar uma vida de regalias, com carros de luxo, motoristas à disposição e jantares regados a Brunellos di Montalcino. Até o salário de empregados das fazendas de sua família seriam pagos com recursos desviados do caixa abastecido por verbas públicas. Em 2021, o caso foi encaminhado ao Ministério Público Federal do Rio, depois enviado à alçada de São Paulo, e levou ao afastamento do executivo. O inquérito acabaria sendo arquivado por falta de provas, e Portugal, que afirma estar tudo esclarecido e agir conforme a lei, retornou ao cargo. A volta do assunto aos holofotes se dá agora com o pedido de recuperação judicial da Pró-Saúde na Justiça de São Paulo, no fim de maio. O rombo da OS é de 1,6 bilhão de reais, fruto, segundo a organização, de calotes em série por parte de estados e municípios.
Mas as condenações por improbidade administrativa em passado recente, somadas a um conjunto de documentos internos obtido por VEJA, revelam que o buraco financeiro em que se meteu a OS tem raízes em um extenso roteiro de mau uso do dinheiro. Uma análise dos contratos entre a Pró-Saúde e fornecedores de insumos hospitalares mostra que a organização selava acordos impondo um pedágio: ele consistia em uma cláusula que obrigava as empresas a conceder descontos entre 5% e 10% sobre a tabela de preços adotada pelo SUS (veja trecho do documento). “A gente emitia nota fiscal com o preço cheio, que era repassado para as secretarias de Saúde sem que o abatimento fosse registrado. Funcionava como uma espécie de caixa dois”, explica Frederico Aurélio Bispo, diretor-executivo do grupo Síntese, que fornecia próteses para a OS e hoje pena para reaver uma dívida de 6 milhões de reais. A VEJA, a Pró-Saúde diz que tal desconto “era convertido diretamente para o benefício das próprias unidades de saúde”.
Enquanto essas tratativas transcorriam nos bastidores, há indícios de que uma ala de funcionários da Pró-Saúde se beneficiava delas. Em Santarém, no Pará, o MP investiga suspeita de enriquecimento de figuras que integravam a folha de pagamento, mas não moravam na cidade. Não era, porém, todo mundo que se dava bem. No Tocantins, a organização foi condenada em primeira instância a devolver 13,5 milhões de reais aos cofres estaduais, embora seja bem maior — ali, como em outros estados, médicos, funcionários e empresas brigam na Justiça para conseguir o que lhes é devido.
O declínio da Pró-Saúde já se anunciava em dezembro de 2022, quando a OS continuava a declarar saldo positivo em caixa no valor de 569 000 reais. Estar no azul, como se sabe, é pré-requisito para participar de licitações e firmar contratos com o poder público. No papel, estava tudo certo. Documentos da própria organização, no entanto, põem o fato em xeque. Em outubro de 2020, um ex-diretor financeiro denunciou, no canal de integridade da instituição, que a conta andava negativa em mais de 34 milhões de reais e que a senha bancária em seu nome era utilizada indevidamente, mesmo após seu desligamento. Segundo ele, as diferenças eram cobertas com o uso do dinheiro público, por meio de malabarismos contábeis. Apesar do alerta, a auditoria interna concluiu que não havia irregularidades no balanço. Em sua defesa, a Pró-Saúde sustenta que “não atravessa uma operação deficitária e que divulgou demonstrações financeiras em que apresenta valores de crédito a receber”.
Nos tribunais, a Pró-Saúde argumenta que o desequilíbrio é fruto do aumento dos gastos em razão da pandemia. Mas MPs em estados nos quais a OS atua já apontavam inconsistências bem antes. Um exemplo vem do Pará, onde uma ação de improbidade administrativa gira em torno do Hospital Galileu, em Belém. Segundo os promotores, os diretores da organização empregavam as verbas de lá para comprar bens pessoais, como celulares. Ainda de acordo o MP, aditamentos de contratos com o objetivo de cobrar por serviços já previstos no acordo inicial, gerando duplicidade, era “prática corriqueira”. O órgão diz também que a instituição concedia empréstimos a outros hospitais administrados pelo grupo sem cobrar juros ou exigir garantias. No total, conforme a ação, o prejuízo aí soma 14,5 milhões de reais, em valores não corrigidos.
Condenada em primeira instância, a Pró-Saúde recorreu e tentou, sem sucesso, derrubar a decisão por dezenove vezes, mas o convênio acabou desfeito no Pará. O último relatório informa que a OS administra hoje dezesseis unidades em seis estados. Mesmo que o processo de recuperação judicial siga adiante, dificilmente todos os compromissos serão honrados, avaliam as autoridades. “A conta vai acabar ficando para o Estado brasileiro”, lamenta o promotor Sávio Brabo. Enquanto isso, a população continua penando com serviços precários, filas intermináveis e o desrespeito àqueles que precisam de socorro.
Fonte: Veja