O crescimento vertiginoso de instituições de ensino médicas no país têm preocupado setores da classe. Recentemente, a Associação Bahiana de Medicina – ABM divulgou uma nota de repúdio sobre os riscos da abertura indiscriminada de cursos de Medicina no Brasil. Em teoria, pacientes podem ser expostos a profissionais com formação profissional insuficiente, sendo necessária uma análise incisiva sobre o caso. Para falar sobre este tema, o professor Titular de Gastro-Hepatologia da UFBA, médico hepatologista Raymundo Paraná, que recebeu recentemente a Comenda 02 de Julho, traz reflexões importantes sobre o contexto.
O Ministério da Saúde chancelou a abertura de novos cursos. Qual a sua opinião?
A chancela de novos cursos está a cargo do Ministério da Educação dos cursos médicos. A minha opinião é que o Brasil tem cursos médicos em demasiado e não tem nenhuma estrutura para avaliar a qualidade desses cursos e dos egressos desses cursos. Essa é a minha grande preocupação. É possível que algumas dessas escolas sejam muito boas e que mereçam permanecer e ter a chancela do MEC. É possível que novas propostas tragam opções muito melhores até do que as que a gente tem, mas, seguramente, tem muitas dessas escolas que não têm condição de funcionamento porque não cumprem minimamente o que se espera na formação de um médico.
O que falta na formação médica de Instituições não confiáveis?
Primeiramente, falta um diagnóstico claro através de um Regulatório. Nós não temos um Regulatório que avalie essas escolas, de fato, e não temos uma avaliação dos egressos. Eu acho que a situação no Brasil é tão grave que se nós fizéssemos um teste, como se faz um Revalida para os médicos do exterior, se fizesse um “Valida” para os médicos brasileiros, é possível que tenhamos uma situação muito parecida àquela que ocorreu na OAB. Os cursos de Direito, nas décadas passadas, cresceram estupidamente, o que levou a Ordem dos Advogado a fazerem um teste para que o indivíduo pudesse exercer a profissão. Isso porque já se havia a percepção de que o nível dos egressos era muito baixo. É muito fácil pensar nisso.
Nenhum país do mundo seria capaz de formar tantos professores, tantos campos de prática, para tantas escolas, em tão pouco tempo. Isso é uma inequação. É óbvio que o número desatinado de Escolas Médicas não se acompanhou de infraestrutura, nem de formação de professores de forma adequada, nem de disponibilização de campos de prática de forma adequada para garantir um bom curso médico. Uma das maneiras de se avaliar isso é justamente no egresso, como fez a OAB. E o teste da OAB reprova muita gente. Talvez dois terços dos que são egressos continuam Bacharéis em Direito, mas não serão advogados até que consigam passar no seu teste. Já fui muito contra isso, mas, neste momento, eu acho que essa é uma possibilidade e a gente deve trazê-la ao debate.
A abertura desenfreada desqualificou o Ensino Médico?
Eu acho que foi um dos fatores para a desqualificação do Ensino Médico, sem dúvida. Como eu disse, não há como se formar professores tão rapidamente para uma demanda tão grande de Escolas Médicas; não há como se adequar campos de prática para essas Escolas Médicas. A maioria dessas escolas, nem Hospital Escola tem. Eles utilizam equipamentos terceirizados, muitas vezes equipamentos do Estado, que são utilizados por duas, três outras Escolas. Não sabemos se a Preceptoria está adequada para receber esses alunos, nem sabemos as condições em que esses alunos são recebidos e são orientados nessas Instituições. Mas há de se prever que não seja nada bom, sobretudo em cidades do interior, onde os recursos são muito poucos e os campos de prática são desprovidos de maiores recursos para a formação do aluno em baixa e média complexidade.
Qual a sua avaliação em relação à formação de professores?
Eu acho que os professores devem ter uma formação. Há aqueles que têm um talento para o Ensino, mas hoje exige-se muito mais do que o talento; exige-se que esse indivíduo tenha conhecimento pedagógico; que conheça os diversos modelos de ensino médico que hoje são praticados em vários países. É necessário que ele tenha uma formação sólida e que ele, preferencialmente, tenha Mestrado e Doutorado, porque aí ele consolida a sua capacidade de Mestre e a sua capacidade de Pesquisador ou, pelo menos, de identificar aqueles que podem gerar conhecimento. Nós não aumentamos o número de Mestrados e Doutorados para atender esta proporção desenfreada de Escolas Médicas. O que eu quero dizer com isso? Que é provável que muitos professores de Medicina sejam garimpados no mercado sem que passem por um processo de seleção, sem que tenham incentivo para seguir a carreira docente, até porque não há profissionais com este tipo de qualificação disponíveis. Eu também não vejo das Escolas a disponibilidade em oferecer as ferramentas para que eles possam se qualificar na carreira.
Precisamos de mais médicos e mais de profissionais bem formados?
Eu acho que hoje o Brasil realmente já não tem uma necessidade apenas de mais médicos. Precisa de mais médicos BONS. O que a gente precisa também é distribuí-los melhor. Para distribuir melhor esses médicos, nós temos que ter um plano de carreira para o médico, semelhante ao que o Judiciário faz com os Juízes. Os Juízes têm um plano de carreira. Eles passam num concurso, o que já garante minimamente a sua qualidade técnica. Em seguida, eles são alocados em regiões mais ermas e depois, de acordo com a sua avaliação e pelo seu tempo de trabalho, eles vão seguindo para outras cidades. Isso é um plano de carreira. O Médico não tem isso. Ele vai para uma cidade qualquer, sem a mínima condição de funcionamento, muitas vezes fica dependente de políticos e não tem nenhum pertencimento ao Sistema, porque a carreira do Médico não existe. Muitas vezes é apenas um bico, onde o indivíduo é recém-formado, ele sabe que vai ganhar um dinheiro ali, e vai pegar aquele trabalho, sem planejar o seu futuro naquele trabalho.
É por isso que essas equipes são voláteis. E quando essas equipes são voláteis (em outras palavras, os médicos vão e daqui a seis meses, um ano, vão para outro lugar, às vezes fazem concurso, passam em Residências e abandonam), todas as vezes que há essa volatilidade, não é possível ter um Programa de Educação Médica que possa condensar as lacunas nas formações desses Médicos. Então, nós entramos num ciclo vicioso. Não sabemos a qualidade do médico que chega para atender a população. Quando começamos a perceber as lacunas e as suas deficiências, não conseguimos fazer um Programa de Educação Médica porque eles vão embora, eles não têm pertencimento ao Sistema. Isso é muito ruim.
Quais os riscos que a população sofre diante de um profissional inexperiente?
Acho que a questão aí não é inexperiência, é profissional mal-formado. O profissional experiente é resgatado na medida em que ele vai sendo exposto progressivamente ao exercício da profissão. Mas ele tem juízo crítico, ele tem ferramentas que permitem um raciocínio clínico claro e a utilização racional dos recursos diagnósticos e terapêuticos. Já o profissional mal-formado, ele tem o raciocínio clínico perturbado, ele é incapaz de fazer um eixo da avaliação diagnóstica e acaba solicitando exames descontextualizados de forma voraz, o que não ajuda na resolução do caso do paciente. Portanto, além de não resolver o problema do paciente, por não chegar ao diagnóstico, ele acaba também expondo o paciente a exames desnecessários que podem gerar suspeitas diagnósticas descabidas e que, por sua vez, acaba gerando investigações fúteis para o paciente e, não raro, perigosas.
Há médicos recebendo diplomas sem a devida formação?
Para responder esta pergunta, nós deveríamos ter um teste de avaliação aplicado a todos os recém-formados. Seria muito fácil saber isso, da mesma maneira que hoje nós sabemos com a aplicação do Revalida. O Revalida, que é aplicado para médicos formados em Universidades estrangeiras, sobretudo essas Universidades dos países latino-americanos, que dizem formar e fornecem diploma de Medicina, quando esses jovens fazem o teste revalida, que é um teste muito simples e superficial, o índice de reprovação pode ser superior a 80%.
Então, sem um teste de avaliação, fica difícil dizer se estão preparados ou não. Falta também a estruturação de um regulatório e de um fiscalizatório para que possamos avaliar essas Escolas desde o momento do ingresso do aluno até o momento do egresso do aluno. É algo que o Brasil está devendo à sua população.
O que eu acho pessoalmente do Programa Mais Médicos?
O Programa Mais Médicos é sensacional do ponto de vista do seu conceito. É preciso descentralizar a Assistência Médica no Brasil e oferecer uma assistência médica para todos os brasileiros, mesmo das regiões mais distantes e mais carentes. O problema não é o conceito do Mais Médicos, que precisa ser mantido e que deve ser estimulado. O problema é a ausência de um plano de carreira para o Médico para que ele possa ter pertencimento e entendimento do tamanho desta política pública. Sem isso, não teremos os resultados esperados, apesar de grandes somas investidas. Paralelamente, sempre digo que não se dá qualquer coisa a quem não tem nada. O usuário do SUS, por mais carente que seja, por mais longe que habite, tem o direito de receber um profissional que tenha qualidade na sua formação. Não se dá qualquer médico a quem não tem médico. Essa é uma visão elitista que precisa desaparecer do modelo brasileiro de tratar as carências da população. Saúde não é caridade, é direito do cidadão. Ter acesso a um médico qualificado é direito do cidadão.
O que as Associações Médicas e o Conselho Federal de Medicina têm feito para combater a abertura de Instituições de Ensino?
Nenhum país do mundo pode se fechar a boas ideias e a bons projetos. Não vejo como salutar qualquer luta para impedir a abertura de cursos médicos, sobretudo quando isso se baseia na suposição da existência de cursos de má qualidade. Ora, se existem cursos de má qualidade que estão impedindo a chegada de cursos de boa qualidade, há algo muito errado no país.
Assim, considero que qualquer trabalho no sentido de impedir a abertura de novos cursos seja inútil para o país e traz consigo uma mensagem de proteção à mediocridade e de aversão à qualidade. A moratória que foi decretada no Brasil foi absolutamente infrutífera, não só porque foi facilmente derrubada através de liminares, assim como criou um comércio de Escolas Médicas sem precedentes.
Acho que as Entidades de Classe devam lutar por um Regulatório e por um Programa de Fiscalização das Escolas, além do teste do egresso das Faculdades. No dia em que soubermos que determinadas Faculdades não conseguem aprovação num teste de validação do diploma, o próprio mercado entenderá o que está ocorrendo com as Escolas Médicas no Brasil. Neste momento, não temos nenhuma ideia clara além das nossas percepções pessoais e temores.
Qual a importância da Residência Médica?
A Residência Médica deveria ser ofertada a todos, como ocorre em alguns países. Uma vez que o indivíduo tenha terminado o internato, ele deveria adentrar numa Residência para consolidar os seus conhecimentos e depois decidir se seguiria para alguma Especialidade ou se manteria como um excelente generalista, que o Brasil tanto precisa.
Infelizmente, boa parte da procura da Residência Médica se deve à percepção do aluno que ele terá ali uma chance de preencher grandes lacunas do curso médico. É como se o indivíduo tivesse um primário mal-feito e já quisesse fazer o vestibular.
Há algo muito errado nesta questão. Não temos vagas para Residência Médica para todos os egressos do Brasil, e não teremos com essa quantidade de egressos desenfreada, que foram criadas nos últimos anos.
Paralelamente, temos uma imensa heterogeneidade nas Residências Médicas. Essa questão também é difícil de avaliar no país, que não tem políticas claras de avaliação dos Médicos Residentes.
No momento, o Brasil tem grandes desafios que precisam ser vencidos não só no Ensino Médico, como também na pós-graduação Lato Sensu, como a Residência Médica.